Entrevista a Filipe V. Branco, autor de «Entre as Mulheres»

Escrito em 18 de outubro de 2023

Entrevista a Filipe V. Branco, autor de «Entre as Mulheres»

Filipe V. Branco estudou Humanidades, seguindo depois para Ciências da Comunicação. As aulas de Guionismo e Escrita Criativa permitiram-lhe absorver técnicas para canalizar a sua criatividade.
Em 2015 publicou o seu primeiro livro “O Dia em que Nasci” (Capital Books). No mesmo ano iniciou um projecto do Serviço Voluntário Europeu, em Itália, onde viveu durante 10 meses, trabalhando como auxiliar de educação num Centro Educativo para crianças com necessidades especiais.
Ao regressar de Itália, em 2016, publicou o livro “Deixa-me ser” (edição de autor), dando início a um projecto que correu escolas de norte a sul do país, falando de bullying, homofobia e preconceito.
Declara-se assim um lutador pela igualdade de direitos, e ao mesmo tempo, um sonhador que busca na escrita a plena satisfação.

A Intelectual esteve à conversa com o escritor e ficou a saber um pouco mais sobre o seu processo de escrita, as suas inspirações, temas e personagens desenvolvidos no seu mais recente romance, «Entre as Mulheres».

“ – Marta, sei que não gosta de rótulos, que não quer pôr o seu filho numa caixa que o identifique assim ou assim – fez gestos no ar com as mãos –, mas autismo ou síndrome de Asperger não são apenas nomes para categorizar o paciente, são caixinhas necessárias para sabermos onde colocá-lo e como agir.” (Pg.109)

1 - Qual foi o principal desafio em escrever um livro que aborda o autismo e o que o inspirou a criar os personagens do pequeno David e de Marta, a mãe?

O maior desafio foi não cair num estigma ou passar ideias erradas sobre o que é o autismo. Para criar o David fui buscar muita inspiração às crianças com as quais trabalhei no meu projecto de voluntariado no Centro Educativo para crianças com necessidades especiais, em Itália. E no fundo, enquanto escrevia, estava sempre a relembrar-me de não lhes faltar ao respeito em qualquer forma, de honrar aquilo que me ensinaram nas nossas vivências durante os 10 meses do projecto. A inspiração para a Marta nasceu de todas as mães que acompanhei também durante esse tempo. Mães fortes, decididas a fazer tudo para compreenderem e ajudarem os seus filhos.

  

“Lá fora o céu escureceu, alheio ao que ali dentro se desenrolava, e nuvens cinzentas cobriram a vasta extensão da cidade. Pessoas distraídas andavam para cima e para baixo na rua. O som metálico do elétrico fazia notar a passagem do tempo conforme subia ou descia. (…) Cairia uma chuva tão forte na rua, que aquelas pessoas alheias teriam enfim que olhar-se umas às outras enquanto comentavam o súbito dilúvio e se escondiam por debaixo das portas e beirais.” (Pg. 33)

“Conforme caminhava em direcção ao pomar, notou um vento forte levantar-se. Este vento quase que o empurrava, trazendo também pelo ar o cheiro forte das hortênsias ora azuis, ora roxas ou rosadas, que tinham sido plantadas pelo desmedido terreno que circundava a casa.” (…)As árvores de fruto carregadas e com as suas folhas verdes e vistosas pareciam querer escondê-lo do resto do mundo.” (Pgs. 52 e 53)

2 - Os lugares onde decorre a narrativa são essenciais para o desenvolvimento do enredo e das ações dos personagens. Entre o onírico e o metafórico, podemos constatar que existe na sua obra uma dicotomia entre o campo e a cidade?

Sem dúvida. Nasci no campo e fui criado numa aldeia, mas aos 18 anos fui viver para uma cidade por causa da universidade. Depois, mais tarde, aventurei-me no estrangeiro e vivi sempre em cidades. Desde então, a minha aldeia passou a ser só o lugar onde regresso para recarregar energias, ver a famíla e amigos. Aquele lugar do coração, muito especial, e ao qual fui dando cada vez mais valor conforme me ausentava e voltava. Penso que esta dicotomia no livro surgiu daí, da minha própria divisão entre o mundo caótico das cidades e a paz aparente do campo. Há muito das minhas origens em certas passagens...

 

“A rapariga aproximara-se, com os seus pés leves, e esticou-se então para a beijar ligeiramente nos lábios. Passou-lhe uma mão fria na face, sentindo-lhe o bafo a tabaco ainda tão forte, e deixou-se ficar calada por alguns momentos. Madalena tinha os olhos fechados e respirava lentamente.

– Madalena – sussurrou a miúda – por que insiste em negar a riqueza da sua família?” (Pg. 102)

3 - Para além da narrativa principal, que aborda o autismo, podemos também encontrar outros temas e histórias paralelas, principalmente na vincada personalidade de Madalena, uma personagem que se destaca e que é, ao mesmo tempo, essencial para o fio condutor da história. O que representa Madalena para si e como foi o processo de criação desta personagem?

A Madalena para mim representa a força que faz mover a história. Mesmo parecendo algo secundária, é ela quem encontra a solução para a falta de um professor de ensino especial para o David. E quis que tivesse esta personalidade vincada, sem medo de dizer o que pensa, às vezes até um pouco atrevida, porque para mim ela representa um misto de pecado e inocência. E por isso dei uma certa ambivalência à sua personalidade. Não posso falar muito sem estragar algumas surpresas da história, mas a Madalena para mim é o farol que sempre guiou e que irá guiar a sua grande amiga Marta até ao final.

 

4 - Como escritor, que mensagem espera que os leitores retirem do seu livro, em particular no que diz respeito a temas como autismo, bullying, resiliência, união e superação de adversidades?

Espero que seja uma mensagem de aceitação. Durante o meu projecto de voluntariado, o que mais me custou foi ver que algumas crianças eram, muitas vezes, rejeitadas pelos colegas e até pela própria família só porque eram… diferentes. Quero mostrar com este livro que as nossas diferenças podem ser a base da nossa união, que nenhum de nós é perfeito, que todos falhamos. O final do livro é muito sobre isto. Se entendermos isso, torna-se mais fácil aceitar o outro como ele é. E daí nascem a empatia e a resiliência necessárias para superar as adversidades.